Vemos o Piques ao centro em fotografia de 1860. A rua à direita é hoje a Quirino dos Santos e a rua a esquerda fica ao lado das escadarias de acesso a estação Anhangabaú do metrô |
Hoje, quase despercebido pela população
que passa apressada pela Rua Xavier de Toledo, o Piques está abandonado a
própria sorte. O local é mal frequentado e perigoso. Mas, nem sempre foi assim,
como nos conta o escritor Raimundo de Menezes em seu livro “São Paulo dos
nossos avós”, Ed. Saraiva, de 1969:
O Largo dos Piques nasceu com a cidade.
Ali se encontrava o chafariz das águas da “cerca dos Padres de São Francisco”,
como o chamavam em 1790...
Há muito tempo, há muito tempo mesmo,
era ali, “ao meio-dia, ao som do sobre do sino de São Francisco, no outro lado
da encosta”, que se realizava o leilão de escravos”.
Nenhum outro lugar mais propício, já
comentou um cronista. A elevação da subida, com o patamar largo, circundado
pelo paredão, punha em destaque a corte enfileirada da mercadoria negra,
representada pelos cativos “Paiss-João” e pelas desconsoladas “Mães-Benta”...
Paulo Cursino de Moura já retratou o
momento dramático: “Na hora aprazada, o meirinho do Ouvidor anuncia,
solenemente, a manada. Reboliço. Emoção. Os pretendentes, raspando a espora no
lajedo, o chicote, batendo a bota luzida, passam em revista os licitados, na
atitude de uma arrogância canalha”.
Começa a licitação. A voz cavernosa do
pregão, os lanços vão subindo à medida das simpatias, das aptidões, da saúde,
da força bruta ou das habilidades dos negros licitados.
- Tenho 600$00 pelo Tobias. Ninguém dá
mais? É um pechinchão. Abra a boca, negro, mostra os dentes. É de lei, meus
senhores, é de lei... Dou-lhe uma...
A saída, após a arrematação, é o
desespero. Pais que separam dos filhos, maridos das mulheres, crianças dos
regaços maternos para seguirem, cabisbaixos e mudos, os domos vários que os
compram.
Mais uma imagem de 1860, tirada do paredão, atual Rua Xavier de Toledo. Vemos ao fundo a outra parte da cidade, à extrema direita estão a Igreja e o Convento de São Francisco |
E aquilo era quase todas as tardes, ali
no Largo dos Piques, quando o sino de São Francisco batia meio-dia. O mesmo
espetáculo triste, as mesmas cenas de cortar o coração. Depois... num dia
memorável se acabou de vez com aquilo: 13 de maio de 1888!
O tempo voou. Outros hábitos, outros
costumes. A cidade crescendo, progredindo...
E ali, como um marco histórico, o
obelisco, com a sua história. Foi o pedreiro Vicente Gomes Pereira quem
construiu o mais antigo monumento que existe em São Paulo. O Obelisco do
Piques, houve tempo, mudou de nome. Passou a chamar-se Pirâmide do Piques.
Erigiram o obelisco em 1814, em
“memória” do Governo da Província, chefiado pelo Bispo D. Mateus de Abreu
Pereira. Daí o nome que tomou: Largo e Ladeira da Memória, sem nenhuma outra
significação. Houve quem grafasse com a maior simplicidade: largo do “Belisco”.
O engenheiro Marechal Daniel Pedro
Müller, segundo nos conta Antônio Egídio Martins, foi, por portaria do Governo
Provisório de 26 de agosto daquele ano, encarregado da construção da Estrada do
Piques, e, dando execução a esse trabalho, como de outros melhoramentos, no
mesmo local, acompanhado de um ofício datado de 17 de outubro que determinava
assim: “porque se deve aproveitar para princípio daquele trabalho (pirâmide),
que se vai fazer em memória do Governo de V. Exa. e S. Sª., o resto da estação
seca deste ano”.
O Governo Provisório, de que fala o
mesmo marechal Müller, era composto do Bispo D. Mateus de Abreu Pereira
Ouvidor, D. Nuno Eugênio de Lossio e Scilbz e Chefe-de-Esquadra Miguel José de
Oliveira Pinto.
A Pirâmide do Piques, que se inaugurou
no mesmo ano de 1814, foi feita de pedra de cantaria e executada pelo já citado
mestre de pedreiro Vicente Gomes Pereira, sob a direção do Marechal Daniel
Pedro Müller.
O Largo da Memória em foto de 1920 |
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O Piques, o primeiro monumento da cidade, em foto atual |
O Piques, na atualidade, deixou de ser o
que era. Tudo se acabou. Do Tanque Reuno não se tem notícia. O chafariz das
águas da “cerca dos Padres de São Francisco” está extinto, há muito tempo. O
Anhangabaú, ali por perto, foi enfiado por debaixo da terra. Apenas a pirâmide,
a expressar, talvez, um símbolo maçônico, permanece de pé, recordando o passado
lembrando tantas histórias...
Aquilo por ali era desolador: um
amontoado de casinholas velhas, quase a caírem, habitadas por gente da pior
espécie, de propriedade de padre Pascoal... Esse Padre Pascoal (quem o
conheceu? – pergunta Paulo Cursino de Moura) “tinha energias garibaldinas na
defesa de seu patrimônio, jamais se receando os baldões de sarjeta das suas
inquilinas fúfias o maculassem na via pública, no período em que o Piques, para
ser mais alguma coisa, já tinha sido tudo para a cidade antiga, foi o receptáculo
da escória”.
O Padre Pascoal não dava tréguas àquela
gente. Batina suja, trescalando a suor, o velho sacerdote italiano saia de
porta em porta a cobrar os seus terríveis e desbocados inquilinos, escutando
impropérios a cada instante, indiferente aos palavrões medonhos e cabeludos,
atento apenas ao dinheiro que amealhava. E aquilo era todo fim de mês.
Houve também época em que o engraçado
“barbeiro” Juó Bananére (Poeta Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, também
engenheiro), de tão impagável recordação, manteve, em São Paulo, um jornal de
sucesso: o “Abaixo o Piques”. Lembram-se? O “salô” da sua “barbearia” ficava
ali bem no centro do largo, “com foro de consulado, centralizando, no dialeto,
ítalo-paulista, a fase urbana mais pitoresca de São Paulo”.
Boas gargalhadas provocou, dos
paulistanos de então, o espirituoso engenheiro com as suas tiradas sobre o
Piques.
Em 1908, a Câmara Municipal alterou o
nome da ladeira para o de Quirino de Andrade. Sempre eterna mania de destruir
as velhas tradições...
Trecho extraído do livro “São Paulo dos nossos avós”, de Raimundo de Menezes, 1969.
muito pitoresca a cronologia fotográfica do local... parabéns!
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