quinta-feira, 13 de junho de 2013

PIQUES, O PRIMEIRO MONUMENTO DA CIDADE

Vemos o Piques ao centro em fotografia de 1860. A rua à direita é hoje a Quirino dos Santos e a rua
a esquerda fica ao lado das escadarias de acesso a estação Anhangabaú do metrô

Hoje, quase despercebido pela população que passa apressada pela Rua Xavier de Toledo, o Piques está abandonado a própria sorte. O local é mal frequentado e perigoso. Mas, nem sempre foi assim, como nos conta o escritor Raimundo de Menezes em seu livro “São Paulo dos nossos avós”, Ed. Saraiva, de 1969:
          O Largo dos Piques nasceu com a cidade. Ali se encontrava o chafariz das águas da “cerca dos Padres de São Francisco”, como o chamavam em 1790...
          Há muito tempo, há muito tempo mesmo, era ali, “ao meio-dia, ao som do sobre do sino de São Francisco, no outro lado da encosta”, que se realizava o leilão de escravos”.
          Nenhum outro lugar mais propício, já comentou um cronista. A elevação da subida, com o patamar largo, circundado pelo paredão, punha em destaque a corte enfileirada da mercadoria negra, representada pelos cativos “Paiss-João” e pelas desconsoladas “Mães-Benta”...
          Paulo Cursino de Moura já retratou o momento dramático: “Na hora aprazada, o meirinho do Ouvidor anuncia, solenemente, a manada. Reboliço. Emoção. Os pretendentes, raspando a espora no lajedo, o chicote, batendo a bota luzida, passam em revista os licitados, na atitude de uma arrogância canalha”.
           Começa a licitação. A voz cavernosa do pregão, os lanços vão subindo à medida das simpatias, das aptidões, da saúde, da força bruta ou das habilidades dos negros licitados.
          - Tenho 600$00 pelo Tobias. Ninguém dá mais? É um pechinchão. Abra a boca, negro, mostra os dentes. É de lei, meus senhores, é de lei... Dou-lhe uma...
            A saída, após a arrematação, é o desespero. Pais que separam dos filhos, maridos das mulheres, crianças dos regaços maternos para seguirem, cabisbaixos e mudos, os domos vários que os compram.


Mais uma imagem de 1860, tirada do paredão, atual Rua Xavier de Toledo. Vemos ao fundo a outra parte
da cidade, à extrema direita estão a Igreja e o Convento de São Francisco

E aquilo era quase todas as tardes, ali no Largo dos Piques, quando o sino de São Francisco batia meio-dia. O mesmo espetáculo triste, as mesmas cenas de cortar o coração. Depois... num dia memorável se acabou de vez com aquilo: 13 de maio de 1888!
           O tempo voou. Outros hábitos, outros costumes. A cidade crescendo, progredindo...
           E ali, como um marco histórico, o obelisco, com a sua história. Foi o pedreiro Vicente Gomes Pereira quem construiu o mais antigo monumento que existe em São Paulo. O Obelisco do Piques, houve tempo, mudou de nome. Passou a chamar-se Pirâmide do Piques.
           Erigiram o obelisco em 1814, em “memória” do Governo da Província, chefiado pelo Bispo D. Mateus de Abreu Pereira. Daí o nome que tomou: Largo e Ladeira da Memória, sem nenhuma outra significação. Houve quem grafasse com a maior simplicidade: largo do “Belisco”.
           O engenheiro Marechal Daniel Pedro Müller, segundo nos conta Antônio Egídio Martins, foi, por portaria do Governo Provisório de 26 de agosto daquele ano, encarregado da construção da Estrada do Piques, e, dando execução a esse trabalho, como de outros melhoramentos, no mesmo local, acompanhado de um ofício datado de 17 de outubro que determinava assim: “porque se deve aproveitar para princípio daquele trabalho (pirâmide), que se vai fazer em memória do Governo de V. Exa. e S. Sª., o resto da estação seca deste ano”.
           O Governo Provisório, de que fala o mesmo marechal Müller, era composto do Bispo D. Mateus de Abreu Pereira Ouvidor, D. Nuno Eugênio de Lossio e Scilbz e Chefe-de-Esquadra Miguel José de Oliveira Pinto.
           A Pirâmide do Piques, que se inaugurou no mesmo ano de 1814, foi feita de pedra de cantaria e executada pelo já citado mestre de pedreiro Vicente Gomes Pereira, sob a direção do Marechal Daniel Pedro Müller.


O Largo da Memória em foto de 1920

          O velho jornalista Alexandre Hass deu-nos seu depoimento a respeito: “Foi Müller o realizador das obras da Estrada do Piques, com o seu paredão. O obelisco, ereto em 1814, também partiu de iniciativa sua. Em torno da pirâmide, ora rodeada de alegre paisagem, tudo denotava trato e zelo. Infelizmente, (não é coisa recente) gente inconsciente ou má andou raspando o que ainda se podia ler na inscrição que havia no lajeado. O Marechal Daniel Pedro Müller morreu no dia 1º de agosto de 1841. Foi o seu corpo encontrado junto à ponte do rio Pinheiros. Morreu na Rua Tabatinguera, n. 50, na parte demoninada “Detrás da Boa Morte”, parte esta que, segundo a praxe seguida na época em numeração de casas (número par, à esquerda), devia achar-se uns 150 metros aquém do lugar onde está a Capela de Santa Luzia. Müller construiu ainda o chafariz do Piques. Este se situava na junção da atual Ladeira da Memória com a atual Rua Quirino de Andrade. Formava o mesmo ângulo agudo que hoje forma o banco ladrilho que ali está”.
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O Piques, o primeiro monumento da cidade, em foto atual
O Piques, na atualidade, deixou de ser o que era. Tudo se acabou. Do Tanque Reuno não se tem notícia. O chafariz das águas da “cerca dos Padres de São Francisco” está extinto, há muito tempo. O Anhangabaú, ali por perto, foi enfiado por debaixo da terra. Apenas a pirâmide, a expressar, talvez, um símbolo maçônico, permanece de pé, recordando o passado lembrando tantas histórias...
         Aquilo por ali era desolador: um amontoado de casinholas velhas, quase a caírem, habitadas por gente da pior espécie, de propriedade de padre Pascoal... Esse Padre Pascoal (quem o conheceu? – pergunta Paulo Cursino de Moura) “tinha energias garibaldinas na defesa de seu patrimônio, jamais se receando os baldões de sarjeta das suas inquilinas fúfias o maculassem na via pública, no período em que o Piques, para ser mais alguma coisa, já tinha sido tudo para a cidade antiga, foi o receptáculo da escória”.
        O Padre Pascoal não dava tréguas àquela gente. Batina suja, trescalando a suor, o velho sacerdote italiano saia de porta em porta a cobrar os seus terríveis e desbocados inquilinos, escutando impropérios a cada instante, indiferente aos palavrões medonhos e cabeludos, atento apenas ao dinheiro que amealhava. E aquilo era todo fim de mês.
         Houve também época em que o engraçado “barbeiro” Juó Bananére (Poeta Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, também engenheiro), de tão impagável recordação, manteve, em São Paulo, um jornal de sucesso: o “Abaixo o Piques”. Lembram-se? O “salô” da sua “barbearia” ficava ali bem no centro do largo, “com foro de consulado, centralizando, no dialeto, ítalo-paulista, a fase urbana mais pitoresca de São Paulo”.
         Boas gargalhadas provocou, dos paulistanos de então, o espirituoso engenheiro com as suas tiradas sobre o Piques.
           Em 1908, a Câmara Municipal alterou o nome da ladeira para o de Quirino de Andrade. Sempre eterna mania de destruir as velhas tradições...


Trecho extraído do livro “São Paulo dos nossos avós”, de Raimundo de Menezes, 1969.

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